BEI JÔ 

Olá, tudo bem? Como estás? Vamos ao meu debut, aqui assinando a coluna BRINQUEDOS E FOLGUEDOS – O universo das tradições populares brasileiras. Espia a afoiteza da minha pessoa, lançando um tema estendal desse. E quando falo universo, ao bem da verdade, melhor se apropriaria o termo MULTIversos, pois são manifestações facetadas em artes integradas, que desenvolvem temas nossos, cotidianos, costumes, crenças, mitos… Porque Brasil é assim, tudo em um só instante, e cada brinquedo, em seu “aqui e agora”, mantém vivaz a narrativa do nosso enredo, versado em nós, povo plural.  

As expressões populares contextualizam a nossa cosmologia… Sim, vou falar de muitas coisas que podem ilustrar quem somos, explicar alguns comportamentos e perceber atitudes que temos, como povo brasileiro, salve meu guru Darcy!  Sem perder o fio da poesia, vou falar das nascentes de variados “Brasil”. E aqui, já pedindo licença à Ancestralidade e, também, para me livrar de encrenca com as respectivas personagens verossímeis, vou trazer a história, os acontecimentos, os causos, ora via contos de realismo fantástico, ora versejando nas variadas métricas do cordel. E seguindo a irreverência de nossas brincadeiras, ora seguirei em passeios crônicos pela vida da cultura popular como ela é, em personas fictícias; ou através de minha interpretação, por verossimilhança, como brincadora de rua por mais de quatro décadas. Tendo em espírito criativo e maestria nessa guiança, o paraibano da Serra do Teixeira, Poeta do Absurdo, Zé Limeira. Acho que vais gostar. Tudo bem?! Espero que sim. E o assunto da vez é: Jô Soares.   

Os folguedos brasileiros, festas da “folga” do trabalhador mestiço, as danças, as personagens, a musicalidade, a expressão, a poesia, o cenário, as indumentárias, as danças, as comidas sagradas, os deuses, povos e nações que aqui estiveram e estão, são meu alimento imaterial há muito tempo. É minha respiração, fonte de autoconhecimento e estruturação identitária. Sempre comento que quando sabemos todas as respostas, o destino muda todas as perguntas. E hoje a minha programação do dia 5/08/2022 era justamente, com o peito cheio de gratidão, escrever pela primeira vez aqui, neste respeitoso sítio de amizade, para publicação no primeiro sábado do mês, ou seja dia 06/08. Mas com a fatídica notícia que Jô havia morrido, chorei até secar. E como rosa murchei e como embuá me fechei. Senti-me tal como a mente de Alonso, de Cervantes, seca. Meu herói da cena, meu símbolo de criatividade, tinha ido embora. Fiquei sem chão também quando Chico Anysio pousou no firmamento. Mas sei que agora tá tudo misturado por lá. Imaginas a festa junto com Agildo Ribeiro, Miele, Ary Toledo, Costinha, Dercy Gonçalves, Marinês e Elke, só para começar? Pensando nessa turma, sinto-me livre para falar o que era preciso e desatar o nó da guela!   

Esses são heróis e heroínas não só meu mais do povo brasileiro. Mas falo de pessoas poderosas, não de objeto plástico para se pregar na parede, ou se expor na estante. Imóvel e obsoleto, criando poeira e parado no tempo. Remeto a memórias vivazes, lembrança-comida da construção de referências míticas, que se tornaram em meu caso, o viés de salvação pessoal, a saída para uma realidade adversa, preconceituosa e machista. Entristeci muito. Sei que Ele ia um dia, mas logo no dia que reservado à estreia da coluna? Perdi o fio da meada. Fiquei estanque, com discurso, mas sem curso. “E a coluna?”, pensei. É, a (o) leitora (o) é mais importante nesta hora. Em respeito a ti, que me lê, eis o caldo que consegui moer.  

Em um panteão junto com tantas outras pessoas da comicidade brasileira, Jô era a nossa realidade fantástica onde se podia brincar e, como falamos em Recife, “tirar onda da cara de” qualquer um daquela sociedade, daquele tempo. Em meu caso, nas décadas de 70 e 80, o cenário midiático do humor foi fonte de meu repertório infantil e de desenvolvimento adolescente, adulto e hoje na pessoa velha. A ideia de poder ter várias caras em uma só, era a resposta para uma mente fragmentada. Rir parecia ser a forma de sair da invisibilidade, mesmo que fosse “rir de mim” e não “rir comigo”. Para cada situação cotidiana, era possível buscar uma máscara e poder se safar, entendes? Imagine uma criança, na sala, assistindo TV, junto com todo o resto da família, e tem um homem gordo vestido de mulher, com uma mãe bem magrinha, dizendo “Em pensar que eu saí dessa barriguinha”. Claro que não havia saído, era óbvio. Mas todos riam como se isso fosse possível de se ver na rua. Claro que não, outra vez. Isso só se via nos programas da televisão. E isso eu fui entendendo. Ou seja, o lugar mais seguro e livre, para se ser quem quiser e poder imaginar-se em qualquer situação rizível, era na ficção. A realidade era bem outra. Mas é de tanto rir dos dramas, e colocá-los nas praças, terreiros e esquinas, que aprendemos a nós adaptar. E foi isso que eu fiz. 

Naquela época era bom ver as emissoras competindo com programas para cada vez mais ousados e sofisticados, para manter uma audiência impactada, motivada e absorvendo todas aquelas marcas e produtos dos reclames, ou melhor, intervalos comerciais! A risadaria, comia solta e assim como todos as personagens de Jô, vinham as criações de Os trapalhões e de Chico Anysio e de Chacrinha, e suas Chacretes, com tiradas e piadas recheadas de ironias, jogos de palavras, duplo sentidos e ambiguidades. Quando esses momentos eram apreciados? Em nossas folgas, ora! Quando ninguém está desenvolvendo nenhuma atuação social, nem estudando e nem trabalhando. Na folga. Lembro-me de ficar tardes e noites vendo, como aquelas personagens tão malucas, preenchiam nossas vidas, e eram sempre imitadas em rodas de conversa. Porém, bastava olhar de lado, nas cenas reais, a falta de espaço para as gargalhadas. Nos momentos da folga, assistindo os programas humorísticos, o contexto sociocultural com rigores ditatoriais, patriarcal severo, em que se prendiam as cabritas e libertavam-se os bodes. Em que o homem não chora e a mulher era preparada para um casamento, de preferência com algum parente em segundo grau, ou amigo da família, ou com patente. Em que faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Naquelas poucas horas, as gargalhadas uniam e salvavam. 

Era a nossa folga, em estados de “folgazões”, rindo juntos e por breves instantes, esquecíamos  da violência doméstica, dos castigos, do alcoolismo, das competições financeiras por posses, ou luta por um carinho espontâneo. Olhando para a telinha e brincando seu próprio drama, todas as mazelas eram abrandadas, com todos sentados à frente da televisão. Para mim tornava- se mais fácil usar uma analogia daquela figura travestida e multicolorida da tela, que usar minhas vivências para sanar uma injustiça, por exemplo. O que se via era uma transformação cultural que se estabelecia, criando novos olhares e leituras. Nem todos percebiam isso, eu sim. As sketches iam para o nosso dia-a-dia escolar ou na rua de casa. Comentávamos se teríamos ou não coragem de nos vestir como Bô Francinete, ou o que gostaríamos de ser Rei, ser Rei, ser Rei! E imaginar o que faríamos se tivéssemos aquele poder. E se alguém fosse gay, já que havia um Capitão Gay? Questionávamos até as cores de nossas fardas escolares que (em Recife era como chamávamos uniforme), sempre azul, verde escuro, vinho, ou marrom. Tão sem graça. 

Assim, leitora, leitor, hoje dei-me a liberdade dessa narrativa livre, em primeira pessoa, e mudar de assunto e falar da mesma coisa. E enfim, homenagear a comicidade brasileira, devido ao valor que não só tem para mim, como assinatura de multiartista, mas para tantos do povo Brasil. Lembrando que nossos folguedos são brinquedos que bebem da fonte da sátira, da farsa, da pantomima, da tragicomédia e dos paradoxos socioculturais, em que as personagens são caricaturas de comportamento social completamente divergente daquele recorte histórico que o originou.  

Nesses brinquedos, com fazeres e saberes libertadores, preservam-se as tradições, compõe-se um espaço de cura, e organiza-se o processo de adaptação. Nas brincadeiras, povos e nações estão juntas, em família, em processo circular ou cortejo. A mente, o corpo e o meio social brincam pelo todo-ancestral. É um sacro-ofício, em que as tensões são aliviadas, a dureza da vida da Mata, do Agreste, do Sertão, Cerrado, mangues, do Litoral, dos morros e das comunidades, é mais fácil de se levar a diante. O brinquedo é, e sempre será, o respiro certeiro.  Somos assim, da festa, da alegria, em essência. Rápidos e matreiros na irreverência. Uma “Misturada” de nações africanas, indígenas e ibéricas. Drama e comédia unidos por Linha 10. Um eterno duplo sentido, multicolorido, assim como Jô. Até mês que vem. 

 

Que bom que tu chegaste até aqui! Assim, um “aperitisco” (aperitivo + petisco): 

O LINE-UP DO CÉU 

TÁ MAIS RISONHO E BRILHANTE 

CHEGOU AGORA UM GIGANTE 

PRA FIGURA E PRO PAPEL 

QUE DA PEDRA TIRA MEL 

FAZ DIVERTIR AOS MILHARES 

SALVE NOSSO JÔ SOARES 

NO PALCO, CINE OU TEVÊ 

FAZ O POVO SE ENTRETER 

BEIJA CHICO, QUANDO ACHARES! 

 

MRCL 07-08-2022

Maria Rosa Caldas

Maria Rosa Caldas é Educadora sociocultural, multiartista, designer, cordelista, gravurista e coordenadora da Cia. Pé no Chão.