Vocês acreditam que eu sofri machismo enquanto lançava “O Machista e a Cordelista” no espaço do Sesc na Bienal do Livro de Pernambuco?
Eu até agora estou sem acreditar, porque foi uma cena muito surreal.
Estávamos no meio de um painel de mulheres, do qual eu fazia parte com meus cordéis que eram lançamentos, e no qual também estavam presentes a cordelista maravilhosa Gracie Castro, responsável pela Cordelaria Castro, editora pela qual lanço todos os meus cordéis (mais para frente se juntou a nós também a Kelmara Castro, responsável por todas as xilogravuras dos meus cordéis) e ainda estávamos com a presença honrosa de Dona Deo do Coco, uma grande mestra da cultura popular brasileira, nos encantando com suas maravilhosas canções. Uma mesa linda, montada carinhosamente pela querida Adriana Mayrinck, da In-Finita Portugal, que nos recebeu com tanto amor.
Eu estava terminando de falar sobre “O Machista e a Cordelista” e em seguida Dona Deo já engataria mais um coco lindo, com Katia sua produtora acompanhando no pandeiro, eu no caixixi e todo mundo ali cada vez mais maravilhado com essa senhora de oitenta e poucos anos tão sábia, linda, talentosa e brilhante.
Enquanto eu falava, surgiu uma criatura com um violão e uma caixa de som, e foi se achegando, ali para perto do palco. Eu até pensei que pudesse ser algum músico de Dona Deo, pra estar assim subindo no palco no qual nos apresentávamos.
Eu terminei de falar e me sentei, Dona Deo então começou a cantar e este homem do violão começou a tocar por cima da música dela, a atrapalhando completamente.
Um outro homem me pediu meu microfone, achei que fosse algum técnico do Sesc e entreguei a ele.
A organizadora, meio que sem entender direito, pediu para que o homem do violão deixasse Dona Deo tocar só com a percussão e assim foi.
Logo que esta canção de Dona Deo se encerrou, o homem que havia pego o microfone da minha mão colocou-se a cantar (ele tentou me calar quando pegou o microfone da minha mão?), o do violão desafinado colocou-se a tocar. Todos por cima de Dona Deo.
Katia a retirou do palco. Gracie e eu ficamos. Eu me levantei com meu cordel “O Machista e a Cordelista” em punho e o palco assim ficou dividido: de um lado Gracie e eu, do outro “os invasores”. Um outro cantador emendou na cantoria do primeiro, até que pararam para receber aplauso e eu perguntei:
– O que é isso? É machismo que estou sofrendo? Estou aqui lançando meu cordel “O Machista e a Cordelista” e Dona Deo está aqui neste palco se apresentando com suas canções. Como vocês invadem nossa apresentação no meio e começam a tocar?
Bem, não souberam responder e se retiraram.
Dona Deo voltou ao palco e seguimos nossa apresentação até o final, como se nada tivesse acontecido e em seguida começou a apresentação que estava anunciada na programação como posterior a nossa apresentação, tudo conforme a programação oficial, no site da Bienal e no site do Sesc.
Mas eu juro, foi uma das coisas mais surreais que já vivenciei em toda a minha vida e só me dá a certeza absoluta de que estou no mais correto e certeiro caminho quando decidi por lançar “O Machista e a Cordelista. Acho que nunca recebi um sinal tão claro e tão ilustrativo assim.
E bora de poesia, pra digerir o ocorrido.
Eu acho que já compartilhei essa com vocês, mas dadas as circunstâncias, super preciso mandá-la novamente. Cai como uma luva!
Lutei contra 100 leões
Todos os 100 eram jumentos
Quando em meio aos tormentos
Fui buscar boas lições
Mas só vi aberrações
Que sentiam-se divinas
Boicotando as meninas
Pra sentirem-se potentes
Porém, saibam, seus dementes
Macho nenhum me domina.
É isso! Sigamos firmes!
Um abraço,
Graziela Barduco.
É o fim, num evento de literatura onde imaginamos que haja pessoas sensiveis à pluralidade e abertas à experiência do outro, à alteridade e à empatia, ter de passar por isso. Contudo, tenhamos força, querida Grazi, toda luta é necessária e que os percalços nos façam mais e mais resistentes. O ocorrido só reafirma, de modo incisivo, a importância do nosso percurso contra o machismo. Um beijo carinhoso e que tal fato não perturbe seu brilho.
Graziela, Graciele, Kelmara e Dona Deo, venho prestar minha solidariedade a vocês e me somar a esta luta contra o machismo que insiste em nosso meio. Saibam que vocês não estão sós e que há ações de resistência disseminadas pelo país. Ontem mesmo, no Centro de Excelência Manoel Messias Feitosa, em Nossa Senhora da Glória, Sergipe, inauguramos uma cordelteca cujo acervo é predominantemente de autoria feminina e o seu propósito é justamente preservar a tradição do cordel enfatizando as vozes das muitas mulheres que dedicaram e dedicam suas vidas à arte da palavra. A cordelteca foi batizada com o nome de Alda Cruz, cordelista sergipana negra de 94 anos, que por sua obra e sua trajetória nos inspira e fortalece. Sigam firmes!