TUDO JUNTO E MISTURADO

O Dia dos Mortos parecia muito vivo. Ela lembrava das tradições das histórias dos causos, de tudo o que tinha escutado por sua parentada, pelas crianças da rua, pelos velhos na feira, pelos artistas nas praças, a partir de sua janela, por de trás da porta. Todas essas histórias remontam ao passado mas que de repente, em um passeio utópico, distópico, em uma ruptura com aquela realidade, aquele mundo sofredor, aquele mundo de tristeza, aquele mundo da invisibilidade, parecia ser a saída para mantê-la viva. Aqueles momentos de engolir o choro, sustentar as pancadas, suportar opressões, de sofrer por um cegueira íntima que reverberava no social, ao ponto de não se enxergar o que está claro à sua frente, e que naquele momento, desenhava um futuro.

Afastando-se de tudo isso e de uma realidade indesejada, seu momento é  tomado por luzes, matizes salvadoras e ondas de energia que seguem organizando-se e estruturando um cenário especial. Nesse, aqueles que vivem nas memórias dos vivos e nas lembranças saudosas, voltam a conversar, voltam para se redimir, ou até para tentar esclarecer, atitudes e comportamentos que, naqueles momentos passados, pareciam assertivos, mas cujo fim não justificou seus meios.

Os mortos começam a andar e perambular no salão fictício, animado por uma orquestra das mais variadas competências musicais nunca vistas. Personalidades tão significativas para o universo das artes , ciências e saberes variados preenchiam com suas criações e obras, o ambiente perfeito para dança dos desencarnados. Pela conotação da palavra, o encarnado remete ao vermelho, a cor primária da vida, matiz de tônus enérgico, preparatório, excitatório, do fugir ou enfrentar.

Em meio ao salão os tons harmonizam-se em paleta pastel. Mesas fartas dos melhores quitutes do mundo, figurinos, indumentárias e adereços privilegiavam um design de aparências surreal. Uma cena que revelava a mensagem expressiva daquelas personalidades que aqui na Terra, encantaram e ainda encantam o imaginário coletivo.

Mas ali, diante dos olhos Dela, todos desencantados e com feições pálidas não reprimiam sorrisos, abraços, flertes e sátiras. Exibiam uma alegria volumosa, comportamentos eufóricos, abruptos, um tanto até descoordenados, como se toda a primazia dos movimentos e pensamentos, fosse deixada de lado, em prol de uma fruição de atos exagerados e liberatórios. Como um resgate, uma retomada de memórias de expressões antes vividas, um tanto esquecidas e que precisavam transcender naquela realidade fantasmagórica em gestos hiperbólicos.

Os rostos que ali transitava passeava pelas mais diversas manifestações da capacidade intelectual humana, capacidade corporal do ser e da espiritualidade. Não era um baile comum. Personagens ali que em vida nunca em tempo-espaço poderiam estar convivendo, trocavam ideias como se fossem amigos íntimos, com diferentes experiências para compartilhar.

Revelam-se então novas saídas, conquistas e soluções para fórmulas e situações nunca antes sintetizadas. O encontro dos titãs potenciais desenvolvedores da experiência humana neste planeta, reuniam-se ali conversando sobre o que foram, o que fizeram e de como poderiam colocar de volta, as peças que foram perdidas e ajustar os parafusos dessa engenhoca que é a comunidade da vida. Ela escutava tudo e ia aprendendo a cada enfrentamento.

Quem eram essas pessoas? Ela percebe que não eram necessários nomes, não era necessário saber se na lista constava Fulana.  “Olha ali Beltrano”, “Ai como eu sempre quis dar um beijo em Sicrana”. Um som animalesco chega aos seus ouvidos e grita: “Chega!”. Ela entendeu que o mais relevante era perceber a necessidade viril dos presentes em buscar uma resposta para todos esses anseios que se concentram no egoísmo, na auto centralidade, na ruptura de interser e que seguem criando camadas e camadas de questões distanciadoras da própria verdade. Perpetuam-se trocas injustas, por vezes fundamentadas em valores e princípios morais universais, em que não percebem, ou pouco se importam com a clareza do todo e a coerência de entender-se como tudo também.

Aquelas pessoas mortas, gigantes em seus fazeres e talentos, que nesta Terra deixaram suas proezas e exemplos da importância da preservação da vida como a unidade global, naquele instante entristeciam. Seus rostos pálidos empalideciam mais ainda. O ritmo da orquestra mais potente que existiu em todos esses milhões de anos planetários, reduz seu andamento, entra em disritmia e para totalmente. Os dançarinos mais fantásticos que antes elevavam-se do chão, em piruetas, trocas de passos, coreografias magníficas, os revolucionários do corpo, pouco a pouco seguiam à inércia. Os tons pastéis perdiam gradativamente a sua saturação.

As obras clássicas visuais, maravilhas do mundo, as criações mais significativas no contexto das artes visuais, plásticas e arquitetônicas, que por hora alimentavam as conversas, provocavam sorrisos e sátiras aguçando os humores, aos uns poucos apagavam-se. Em uma velocidade cada vez mais dinâmica e intensa, as mesas, comidas, mobílias, paredes e os ambientes empalideciam em conjunto, e todas as pessoas vão se dissipando, até que tudo se apaga, reinando a inércia total e um silêncio absoluto.

Ela paralisa diante daquele nada, diante do branco intenso. Uma brancura quase total, que a deixa um tanto cega. Ela fecha os olhos e sente a potencialização de todos os outros sentidos. Começa a escutar um som vindo de um ponto, no encontro das paralelas do horizonte. Abre os olhos devagar, percebendo que na perspectiva central algo se mexia com tons escuros. Os movimentos eram bem leves, lentos, e seguia criando uma forma espiraladamente hipnotizante. Ela percebe que o som assemelha-se a uma canção de ninar que a embala suavemente. Ela começa aos poucos a desenvolver um movimento tranquilo com braços e passos, deslizando por aquele ambiente branco de chão macio, tentador ao ninar.  O som aproxima-se cada vez mais, e a forma vai se comportando como figura até que Ela compreende a informação, e entende quem é. Catarina!

Às duas dançam e cantarolam várias canções memoráveis, nostálgicas, melancólicas, tão necessárias de serem cantadas em bom tom. Pés casados, Catarina seguia guiando-a por todo espaço, quando em um dado momento para. Retira de sua bolsa um pincel e um pequeno pote de tinta amarelo que entrega à Ela, dizendo:

– Tudo o que estás vendo, ou que pensas estar vendo, é vida. Tudo o que não estás vendo e que não é perceptível com a consciência humana, sou eu. Queres estar aqui comigo ou voltar?

Catarina se retira cantarolando e dançando seguindo ao ponto infinito.  Ela deita-se no chão macio e olha para cima, olha o nada e a branquitude plena ao seu redor. Levanta-se, respira fundo e começa a pintar nuvens.

 

Imagem: Livre manipulação de Folklorico La Catarina by Alexander Henry

 

 

Maria Rosa Caldas

Maria Rosa Caldas é Educadora sociocultural, multiartista, designer, cordelista, gravurista e coordenadora da Cia. Pé no Chão.