A Mãe olhou para a Professora, a Professora olhou para o Menino e o Menino continuava olhando para o chão. “De onde teria saído aquela história tão estupefata e que havia criado este bafafá desnecessário?”, questionava a Senhorita Rosangela, responsável pela Direção do Educandário Santa Emília de Rodat, localizado no distrito da Serra da Cachemira, em Santa Cruz do Capibaribe, Agreste de Pernambuco. A professora, Senhorita Rosangela, era quase uma “Irmã”, ou melhor, todos a consideravam uma “Irmã” mesmo. Ela apenas não usava hábito, muitas freiras já não faziam mais, principalmente naquele específico ano em que, pela primeira vez na história nordestina, uma escola iria ter turmas mistas. Isto é, turmas integradas compostas de meninos e de meninas juntos. O fato foi até noticiado na Rádio Cantarino, e a Senhorita Rosangela deu uma entrevista que até hoje é comentada por todos. Ao mesmo tempo que a população confiava em tudo que a entidade promovia no Distrito, assuntavam se haveria controle das crianças e adolescentes nessas turmas mistas, bem como se haveria segura preservação da ordem e dos bons costumes, lembrando que viviam em uma comunidade seguidora da organização moral e cívica brasileira.

Senhorita Rosangela era uma pessoa muito bem quista pela grande maioria das pessoas do lugar. As raras encrenqueiras questionavam apenas, o porquê ela nunca havia se casado, ou nunca havia desejado filhos, ou ter vivido qualquer relacionamento com homens, ou mesmo com mulheres. Até mesmo em suas viagens anuais à Europa, para formações e atualizações pedagógicas, nunca se soube, ou pelo menos nunca se descobriu nenhuma evidência, ou quaisquer indícios sobre sua intimidade com qualquer pessoa, de qualquer gênero ou biologia. Quanto fato, fato mesmo, era o seu sucesso à frente do Educandário e suas realizações instrutivas junto à região rural.

A única história de sua vida conhecida, fora revelada quando tomou posse na direção institucional, através de uma reportagem afixada no mural da entrada da escola. Replicada tamanhas vezes, a matéria informa que Rosangela descendia de ciganos alfaiates da Paraíba e que migraram para Recife em busca de recursos. Anos depois, a família viajou para Vertentes, onde estruturaram uma pré-produção de costuras finas para comercialização na Feira da Sulanca, em Santa Cruz do Capibaribe. Anginha, como era chamada desde infância, era filha única e ajudava seus pais em tudo, principalmente alfabetizando-os com todos os saberes que adquiria na sala de aula. A família prosperou e quando Anginha tornou-se adolescente, foi realizar seu sonho de estudar na capital, ingressando na Faculdade de Filosofia de Recife(FAFIRE), no curso de Magistério, e logo após fez a licenciatura em Letras e Pedagogia.

Seguindo os passos de Paulo Freire, Rosangela idealizava terminar seus estudos e abrir uma escolinha infantil em Vertentes mesmo. Porém, com a chegada da Congregação de Santa Emília de Rodat à Santa Cruz do Capibaribe, ela decide ingressar na instituição francesa sendo contratada como professora primária, e nesta se adapta até a conquista do cargo de direção. Essa era a história oficial, publicada em português e em francês pela Congregação. E que de jeito nenhum abrandava o imaginário popular, rotineiramente alimentado por variadas versões das rotinas “pecaminosas” da Senhorita Rosangela.

Enquanto escutava as lamentações da Mãe, no caso Dona Carmen, e do Menino, no caso Tito, 7ªB, Rosangela lembrava de sua oração de agradecimento pelo desafio em assumir as sétimas séries, as conhecidas salas dos “Infernais”. Quando arguida sobre essa nova demanda, ela respondeu que ainda continuava com a sua missão de se dedicar inteiramente a educação dos necessitados. E realmente, havia uma necessidade latente. “Os Infernais” passaram a ser sua reponsabilidade quando Irmã Maria Antônia, depois de um aperreio dos maiores em sala, caiu da escada do segundo andar e quebrou as duas pernas, em uma das dezenas de tentativas de pegar Pedro Ivo com a boca na botija. Infelizmente, a operação Mata Hari lhe custou dezesseis meses de afastamento. Estava na hora de Rosangela acabar com essa arenga, e reestruturar esse caldeirão de hormônios pulsantes. E isso era o que Ela mais adorava fazer, estudar pessoas e provocar transformações através de observações críticas, bem melhor que um casamento.

Escutava Dona Carmen comentar sobre os exercícios anteriores, os trabalhos de “arte”, as pesquisas “científicas” e tantos outros estudos solicitados nos últimos meses. “Coisa de gente da pá virada. E este último então, provocou uma bagaceira na vizinhança toda”, reclamava a Mãe, que exigia explicações sobre as implicações pedagógicas do trabalho. O caso é que Senhorita Rosangela havia solicitado às sétimas séries uma redação sobre os festejos juninos, sobre os santos padroeiros do mês e as curiosidade das festas. Porém a professora pediu que as estudantes e os estudantes pesquisassem além da biblioteca e dos jornais da banca, além dos fatos, das datas verídicas,  pediu para conversarem com seus pais, familiares, amigos e escrevessem sobre as histórias, experiências e momentos  guardados na memória dos pesquisados. E assim Tito fez.

 

EDUCANDÁRIO SANTA EMÍLIA DE RODAT

Santa Cruz, 13 de junho de 1973

Aluno: Benedito Santos Filho

Série: 7ª Turma: B

Professora: Senhorita Rosângela Velásquez

Dever de casa: Redação sobre as festas juninas

 

SANTO ANTÔNIO, SÃO JOÃO e SÃO PEDRO

“Eu sou Tito, Benedito, tenho 14 anos e estudo no Educandário Santa Emília de Rodat. A nossa professora, digo nossa, porque ela nunca se casou para se dedicar apenas a nós, crianças e adolescentes, e isso é muito bom. Ela é uma professora arretada. Ela tem um jeito diferente. Minha Mãe diz que ela é lé-lé-da-cuca. Eu não acho, Senhorita Rosangela é legal pra chuchu. Ela veio para nossa turma em março desejo que fique para sempre. No mesmo dia, Regina perguntou sobre a arte da Semana Santa e ela respondeu que não ia ter mais nenhum concurso de colagem de algodão ou bordado em ponto cruz,  a sala iria organizar uma peça sobre o que as pessoas entendiam por “transformação”. Mas a bagunça só começou mesmo quando ela disse para conversarmos com nossos irmãos menores sobre a extinção do Coelho da Páscoa. Foi um reboliço só e daí veio o susto e o barulho! “TEBEIII”! Quando vimos no fundo da sala Pedro Ivo com a cadeira quebrada rolando de rir. Todos mangaram dele e rimos juntos. Isso nunca tinha acontecido antes. Todo mundo se divertindo junto.

A primeira vez que Senhorita Rosangela falou diretamente comigo, foi quando me perguntou por que meu apelido era Tito e não Dito? “Quando eu era pequeno eu me chamava assim, eu não conseguia dizer Dito, e ficou Tito mesmo.” “Tu tens olhos de curioso, isso é bom”, ela disse e eu fiquei muito feliz, senti um alívio no peito. Irmã Maria Antônia nunca falou comigo assim, nem de jeito nenhum.  Eu estava com muito medo de estudar esse ano com as meninas. Os primeiros meses foram difíceis, mas agora está bem melhor com a Senhorita Rosangela. Só  encontrávamos com as meninas quando havia compromisso de festa, para formarmos pares, dançarmos ou realizarmos alguma gincana. Em junho era assim que acontecia para formar as quadrilhas juninas. Tudo muito acertado, ensaiado e os pares escolhidos pelas Irmãs. Este ano, Senhorita Rosangela disse que poderíamos conversar e escolhermos por nós mesmos nossos pares e não tem problema se ficar menina com menina e menino com menino. E que temos: “maturidade para decidirem isso. E que é importante para seus desenvolvimentos como pessoa adulta”. Eu decorei e anotei no final de meu caderno, para sempre falar isso quando meus pais disserem que sou abestado, estopô, leso, gota-serena. Senhorita Rosangela pediu para escrevermos sobre as festas e é preciso caprichar para que ela se orgulhe de mim e Aninha também. Eu queria saber da vida dos santos, antes de serem santos.

Eu fui falar com meu Pai logo que escutei o caminhão de leite encostando no terreiro. Com meu Pai era assim, tinha que pegar Ele “quente“, porque no outro dia, quando Ele acordava, ficava muito sério e caladão. Perguntei sobre Santo Antônio, São João e São Pedro. Ele devia saber tudo sobre isso, já que tinha um chaveiro com uma cruz e com a imagem de Nossa Senhora Aparecida. E assim Ele respondeu: “Filho, sempre teve uma fogueira, uma palhoça bonita, um altar montado com as imagens dos santinhos. A povaria enfeitada, lorde e elegante, passada à ferro-em-brasa. Desde Seu Bisavô, se tem um dia especial para a organização da festa e a feitura das comidas. Se ajuntava todo mundo no terreiro escolhido.  As mulheres ralando milho para pamonha, canjica, bolo. Munguzá descansando no leite. Os jovens com a decoração guaribada de bandeirinhas e os mais velhos na montagem da fogueira mais bonita da região…” Então Ele parou de falar, levantou e caiu na cama. Pronto foi isso com o meu Pai.

Esperei o dia seguinte para falar com a minha a Mãe. Primeiro precisava saber se Ela estava bem, porque às vezes a beberagem de meu Pai, era descontada no “lombo” dela e só perto do almoço Ela ficava melhor.  O que eu queria saber era sobre os Santos. Porque primeiro vinha o santo para depois existir a festa e era essa minha curiosidade. E eu precisava fazer o que Senhorita Rosangela dizia:” Alimente a sua curiosidade, ou sofra depois”. Bem o que eu sabia era que Santo Antônio, é comemorado dia 13, mas fazemos a festa na véspera, 12. São João é dia 24, mas fazemos a festa na véspera, 23. E que São Pedro é dia 28, mas fazemos a festa na véspera, 29. Dia do Santo Antônio é dia dos Namorados, por que? Eu tinha certeza que minha Mãe sabia dizer. Ela era a conversadeira do arruado. Sabia da vida de todo mundo, dos casais, de quem estava namorando, ou quem tinha amante. Para minha Mãe, Senhorita Rosangela tem um caso escondido com uma namorada em Recife. E que ela encontra todas as vezes que volta de Paris. Com certeza minha Mãe saberia me ajudar com Santontonho.

Poxa. Espero que a Senhorita Rosangela não fique decepcionada comigo. Mas a minha Mãe estava com as suas famosas “enxaquecas” e não saiu do quarto o dia inteiro. E eu resolvi ir para rua, escrever à sombra do ingazeiro, escutando João-Chique-Chique soltar o pio. Eu sempre gostei muito de ficar olhando o céu e de dar forma a todas as nuvens no céu. Ficar aqui na ribanceira do quintal, criando histórias de heróis e vilões. Na maioria do ano o céu está bem azul, esturricado de sol. Mas nessa época do ano, é a que eu mais gosto. Tem mais nuvem no céu e eu posso contar todas as histórias que eu quiser. As nuvens pareciam carneirinhos pulando e eu lembrei de São João, São João do Carneirinho. Qual seria a verdadeira história de São João? Uma hora ele aparecia como criança outra como um velho. O que foi que aconteceu em sua vida de criança, ele brincava de quê e com quem? E Santantonho e São Pedro? Eles gostavam de alguma menina e podiam namorar? Será que tinha alguma coisa escrita em algum lugar sobre isso? Lembrei quando perguntei a Irmã Maria Antônia sobre o que Jesus fez entre 12 e 33 anos, ela deu um grito de “cala a boca Tito”, que vem no meu ouvido até agora. Diacho, ninguém me disse nada que eu achasse interessante de contar sobre os Santos.

Para respeitar o título de minha redação, eu resolvi escrever só o que sei e o que eu acho que sei. O que acho que sei é que os Santos devem ter sido bons amigos. São João era uma pessoa muito rica, porque sempre foi o Dono da Festa e montador de arraial e das quadrilhas. Santo Antônio era seu encarregado de organizar os casamentos, dar conta das comidas e das bebidas. E São Pedro era o responsável pelo lugar das festas, e controlava a portaria, os convites e os ingressos do Arrastapé. Os três organizaram uma festa no passado e que deu certo e assim foi passando os anos até chegar hoje.

FIM.

P.S: Essa era a ideia de minha redação, a minha invenção, que nunca aconteceu, mas quem sabe um dia pode acontecer. Senhorita Rosangela disse para que escrever o que sonhávamos de noite. Eu sonho o tempo todo. Este é um sonho para Santo Antônio me dar uma ajuda.

Em meu sonho minha Rainha do Milho era Aninha. Ai, Aninha. Aninha Rainha do Milho e eu seria o Rei da Cocada Preta. Que afoiteza! Aninha, vestida de branco e eu de terno florido. Quem comandava a Quadrilha da escola toda, era eu e Aninha. E faríamos nossos próprios passos. Nosso Túnel seria uma beleza. Todos nos seguindo no Galope cruzando o terreiro. “Olha a chuva, passou”. Aninha, minha Rainha, comigo no beija-flor, puxando o Desfile das Damas, armando comigo o Caracol e seguindo o Passeio na Roça no mundaréu das nuvens. A cada passo o perfume dos cabelos cacheados de Aninha tomariam conta de salão e nos casaríamos no céu.

Aninha disse que ia fazer simpatia para Santantonho. Ai como eu queria que Aninha visse meu rosto formado com as gotas de vela na bacia virgem. Queria que fosse meu nome que saísse marcado na faca enfiada na bananeira às seis da tarde. Queria tanto que Aninha quando fosse rezar a “Salve Rainha” e na hora do “mostrai”, Aninha sonhasse comigo.

Mas Aninha só quer saber de Tonho. Aquele abestalhado que num sabe nada de matemática, nem eu. Mas eu sei mais de português! Queria que São Pedro abrisse a cabeça dela e colocasse a minha imagem em sua mente seu coração batesse por mim. Queria que ela acordasse de manhãzinha com o desejo de pegar goiaba escondida na Fazenda Acauã e de ficar na ribanceira comigo dando forma as nuvens e dando uma bicotinha de vez em quando.  Aninha, se a gente casasse, será que eu seria um bom esposo, será que eu seria um bom pai? Que atrevimento meu, Aninha, ficar pensando em teu futuro sem tu saberes de nada. Sem tu nem mesmo saberes que eu gosto tanto de tu. E sem nem saber se eu mesmo te mereço. E o que seria da gente depois dessa Quadrilha das nuvens?

FIM 2.

Depois de ler em voz alta o trabalho de Tito, Senhorita Rosangela percebeu as lágrimas de Dona Carmem. A fera que havia entrado em sua sala com pedras na mão, poucos minutos antes, agora chorava copiosamente. Ela não sabia ler direito, tinha pouca ou quase nenhuma formação primária e tinha sabido sobre o texto por uma prima do filho, que escutou a leitura no dia da apresentação na escola.

Tito não entendia o que estava se passando, mas sabia que sua professora iria conversar com ele e esclarecer a reação de sua Mãe, visivelmente amansada. Tudo seria explicado no momento certo. Ele confiava na professora. Tudo seria resolvido sem pressa e sem a moral do “cinturão”.

Maria Rosa Caldas

Maria Rosa Caldas é Educadora sociocultural, multiartista, designer, cordelista, gravurista e coordenadora da Cia. Pé no Chão.