PAPEL HIGIÊNICO

Pois é. Aqui estou eu cagada, sem água na torneira e sem papel para limpar a bunda. Reinando humilhada em meu único trono. Isso reflete a minha humilde vida de hoje, cara pessoa leitora. Envolvida com as responsabilidades, ou melhor com as irresponsabilidades dos outros, chego ao ponto de não pagar as minhas dívidas, resolver os meus perrengues, nem mesmo dar conta de uma transa e até esqueço de comprar papel higiênico.

Mas essa dedicação ao desenvolvimento da obra do outro, ou seja, tomar conta da cagada alheia, sempre esteve presente em minha vida. É uma perseguição presente. Agora vejo tudo. Principalmente observando os belos toletes flutuantes, que tenho pena de mandar embora para não ficar sozinha. Desculpe-me, pessoa leitora, a impecável escatologia Poe-Dos Anjos, porém é sabido que algumas coisas na vida só ganham denotação pela observação concreta da obra.

Penso: se é possível dar forma às nuvens, ler a borra deixada pelo café marroquino, interpretar as sombras nas águas do rio, ou as gotas de vela, que revelam o nome do futuro marido  na bacia virgem na noite de Santantonho, por que cargas d´água eu não posso ler o que revelam os meus toletes boiando? Formam um olho. E só pode ser o olho do cu. Exponho por excreção explícita as minhas amarguras, é o que tenho para hoje. E é assim de onde eu vim. Na cara dura. De forma crua. Percebo que trago em mim todas as cagadas de minha terra e levo-as em meu sotaque, na pele, para onde eu vou. Sabes por quê? Porque é o mesmo cu ainda. E já que estou cagada mesmo, vou é filosofar sobre a situação. Dizem os sábios que quando na merda “se saia de crau”. Então sigo em exploração o despertar das cagadas da minha vida.

Espera, espera aí. Respira, respira fundo. Mais um pouco. Sentiu o odor de merda? Não? Ah.. vai dizer que só eu é que estou cagada, com o rabo sujo e refletindo sobre a própria existência? A verdade é que nos acostumamos com a catinga de nossa cagada. Ela vai maturando e evolui aos poucos, passando à categoria de fedor e acomoda-se. Um tanto depois, evolui para cheiro e por fim põe-se em sua “venta” como essência ou fragrância essencial. E o sinal que a merda antes “carne de quarta”, podre e matadora de narinas, passa a ser conotada como na-tu-ral. Pois é, respira fundo, já que estás acostumada com o aroma. Não pira, pois tem sempre uma cagada bem mais fedorenta que a tua a ser cheirada.

Voltando as minhas divagações sanitárias. Um pensamento entalhado em um banheiro de posto de gasolina, na rota da BR232, em meados de 70, marcou a minha vida. “Merdas cagadas, não voltam ao cu”. Estava ali, diante dos meus olhos, a sabedoria universal de Einstein, cravada na porta de um banheiro de beira de estrada. Pura verdade e eu só consegui ler, porque estava na altura certa. Nessas ocasiões em que precisava me aromatizar de mim, eu tirava a sandália e colocava no assento para evitar o contato. E foi assim, um tanto mais alta, que li a frase marcante de minha sina. Achei muito mais eficiente que “águas passadas não movem moinhos”. Creio que por a imagem de água sempre levar a um significado intuitivo fofinho. Agora a cagada, é uma realidade cheirável e tátil.

A partir de então, adotei o cu como um índice benéfico a minha aceitação social. Penses o poder que esta palavra monossilábica representa ao mundo. Uns a amam, como eu. Outros odeiam ou nem pensam no bichinho, ou bichinha, ou bichinhe. Exemplo, agora vou falar de minha vida cu. Olha aí. Virou a cara? Teve nojo, asco, incomodo ou não quer ler mais? Ou está rindo até agora com a consciência que no fundo, no fundo, tudo acaba em merda? Tu já entendeste o panorama. Duas letras que sintetizam décadas de existência entre prisões de ventre e caganeiras. Viver a vida da outra ou do outro, cuidar mais do mundo, que que de mim mesma, se deve a uma síndrome que eu batizei de Síndrome do Segundo Lugar, ou SSL.

A SSL me aterrorizava quando estava prestes a competir por qualquer premiação, ou por uma nomeação, por uma citação, por uma assinatura, ou qualquer atividade contextualizada como um processo de saber quem era melhor em algo, melhor música, conquistar um lugar top de qualquer coisa, ou ser destaque, ou concorrer a Rainha do Milho, ou dançarina de Lambada, algum ranking…. aiiii. Creio que o conjunto da obra sempre salva a pessoa antes morrer. Mas comigo o que acontecia era ter que me contentar com o segundo lugar. É um quase, é um quase lá. Não é 50% nem 100%. É 90%. E ficam esses 10% de dúvidas e questões que te perseguem, e sabotam eventos especiais. Tirar B é não A. Ser 9,2 e não nota 10?

A SSL me deixava com aquele gostinho de quase ter comido tudo e fica faltando aquele finalzinho. Aquele pedaço de carne do prato de almoço roubado pelo irmão maroto. E como um coito interrompido. E como estar ali no rala-e-rola. Ali no dale, dale, dale, e dale mais. No tele-e-zaga, chegando nível krau nº 5 e então… A pessoa precisa urinar! Bussanha, viu! Essa vida medalha de prata, ficar à sombra ou não aparecer por não merecer. Vida cu é o da impostora, bota para fora quando poderia aproveitar e botar dentro, com carinho consensual. E então botar para fora com intencionalidade e manutenção de si. Eu acreditava piamente que não era para mim e que nunca seria, que não me era merecido. É tu só vê e pensa que a obra é da outra, é do outro, e não é tua. Aquelas pessoas mereciam o ouro e eu não. A SSL me cegava e se estabilizava cada vez mais fundo. Neguei e fugi dos ouros. Prata ou bronze já estavam bem.

Até que um dia o basta veio. A muito custo. E vem porque o mundo te contempla e devolve os esforços da corrente do bem. E para para sobreviver e preservar-me perante a corrida ao destaque de contas pagas, principalmente em meio machista, autoritário e castrador, desenvolvi uma defesa afim com minha personalidade: a capsula imaginária EMBURREÇA-SE. Uma super-power-mega-bluster-power-ranger-rosa para manutenção de minha integridade física, mental e social; e ainda preservar minha assinatura na coletividade.

Com a capsula EMBURREÇA-SE, eu conseguia escapar de uma situação competitiva e ainda assim ter uma oportunidade de vez e voz plantada para colheita futura. A posologia sempre e ainda o é, bem simples. Ao perceber que a tua ideia pode causar um frisson, perturbar a criatividade alheia de uma superior, provocar a discórdia entre a família, destronar uma cagante comum ao seu meio, administre uma capsula intra-retal e segure tua onda. No momento oportuno após ser estabelecido o dilema, ou exposto o conflito, veja se a tua estratégia-ouro, camuflada em prata ou bronze, se adapta. Então exponha. Em caso negativo, reserve-a na gaveta de tesouros, para eventos futuros. Poupar ouro, sempre foi e sempre será uma boa saída às entressafras de uma gestão. Uma reserva energética e idearia é sempre útil ou pelo menos pode-se pagar uma boa empena.

EMBURREÇA-SE sempre foi o alívio certo em situações onde, bastava uma palavra minha para exterminar dez babacas ridículos, machistas, misóginos, e até mesmo derrubar argumentos de mulheres bitoladas ignorantes. A capsula EMBURREÇA-SE traz em sua identidade visual tons azuláceos e traços esverdeantes. Paleta de cor que proporciona a temperança da personalidade, abrandamento de angústias e ansiedades; e te leva a um ponderamento: Não são necessários, em todos os momentos e em todas as situações, ideas tão super-megas criativas, resolutivas, eficientes e eficazes. É importante olhar o seu aterramento. De onde vens e o que te fortalece. As cagadas de teu passado podem te salvar.

A primeira poda de pessoas inteligentes e assertivas em mundo que silencia essas personalidades, será vivida dentro da família. Que começa controlando nossas línguas, lábios superiores e lábios inferior; e nossa fala-corpo quanto um todo. A problemática, ainda preservada, foi estabelecida a centenas de anos em ambiente em que os pais têm inteligências diferenciadas dos filhos e temem por sua evolução. A geração vindoura tem que superar a anterior, ou a vida não se preserva. O Mestre tem que ser superado por seu pupilo ou pupila.

Mas crescida em ringues em casa, na rua, na escola, no interior e percebendo que esses espaços só matavam as relações que podiam ser sagradas, a capsula EMBURREÇA-SE salvou-me, e adquiri o comportamento de dar um passo para trás pela paz. Com um universo de responsabilidades somadas em todas as minhas relações profissionais, emocional e sociais, eu precisava preservar-me em primeiro lugar. Isso! Assim eu me daria o primeiro lugar, a mim mesma. Ou seja para mim, sou o sol e a lua, ouro ou prata, garota nota mil ou deusa mitológica, e está tudo bem. Então a SSL cala-se por vez. E vem a força do conceito de coautoria como meu lema. Promover a coautoralidade sempre sem necessidade de retorno de medalhas metálicas, mas sim do sentimento de realização.

É preciso respeitar valores e marcas originais e isso não tem escambo que negue. Por exemplo, e já terminando meus pensamentos escrachados por sentir uma comichão forte nos pés. Para escrever esse texto precisarei de minha Olivetti Lettera 22, de folhas de papel, de fita datilográfica, de uma mesa, de uma cadeira, de algo que vem antes, certo? Por mais básico que seja qualquer recurso, precisamos do simples para criar o complexo. Quem criou esses recursos antes, também faz parte de minha obra. São coautores e coautoras comigo. O que veio antes preservou nosso hoje, para garantir o pulo do futuro. Esse antes tem que ser sagrado, abençoado e agradecido. O que vem antes é o que te salva. As cagadas dos outros podem te salvar também. Ou em meu caso me lascar. Cabe agora administrar a minha capsula, e não saí de meu caminho mais.

Na comunidade da vida, bichos trocam de pele, mudam os tons de pelugem ao longo de envelhecer e continuam sendo a mesma substância. Na metáfora do rio, seremos outras e outras a cada banho, mas nosso cu é o mesmo, ressignificado a cada lavada. Não tem problema em emburrecer-se às vezes, caríssima pessoa leitora. É bom ceder, dar um passo para trás, ou deixar de ver, mas desde que não macule o teu e nem os nossos valores conviventes. Se eu perder a minha essência sui generes monossilábica, perco a mim mesma. Por hora o melhor é dar descarga e deixar a minha obra, seguir para o mundo, no caso, ao mundo da fossa. Despeço-me com a cabeça leve, as pernas dormentes e o cu sujo. Mas não se pode ter tudo, apelo então, ao Estadão. Bom dia.

Maria Rosa Caldas

Maria Rosa Caldas é Educadora sociocultural, multiartista, designer, cordelista, gravurista e coordenadora da Cia. Pé no Chão.