VERA, a prima de Zé

Vera não tinha irmão, nem irmã. Ela nasceu em 23 de setembro de 1934 e segundo o pai, Seu Tonho da Bodega, foi o ano em que “…o tal do Getúlio deu um jeito de ficar mais um tempinho no poder e inventou a Constituição do Brasil, que de pouca coisa me serve.” Bradava ele, sempre nesta mesma data. Outra coisa costumeira realizada no referido dia, era o tradicional bolo de milho de Passira, recheado com Goiabada Cascão que sua Mãe, Dona Dalva de Seu Tonho da Bodega, produzia todo ano para comemorar o aniversário da Filha. Ela distribuía para quem passasse na Bodega naquele dia, em graças à Santa Maria. Mas esta era uma primavera especial, Vera iria fazer 15 anos e de jeito nenhum queria bolo de milho, que era coisa para as crianças se lambuzarem. Não importava se o município era a Terra do Milho e nem que fosse para pegar briga com a própria Santa, ela não queria saber de milho! Seu sonho era um bolo diferente, um bolo sabor chocolate, com muitas frutas coloridas por cima, assim como tinha visto na revista vendida na Bodega do Pai.

Depois de Vera, que veio ao mundo “…por um milagre de Santa Maria e das mãos da Cachimbeira da Serra!” como repetia sazonalmente Dona Dalva, que antes de casar era “Dadá da Renda de Bilro”, engravidou apenas mais uma vez. Porém perdeu os gêmeos depois de “um passamento” que acometeu a rendeira. Segundo se conta no povoado, foi a tristeza de descobrir “as safadezas” de Tonho na rua do Boqueirão, que a deixaram doente e acamada. Na hora do parto, Tonho não deixou a Velha Parteira ajudar por birra e chamou o Dr. Gilberto para tirar a criança. O quadro de Dalva se agravou e quando o médico descobriu que eram gêmeos, já era tarde demais. No momento de desespero, Dr. Gilberto, que nunca revelou a Dalva qual teria sido a doença dela, perguntou a Tonho para escolher entre a Esposa e as crianças, e Tonho escolheu a esposa. Depois de um tempo ele também adoeceu e mudou de comportamento. Ficava falando sozinho pelos cantos da casa, repetindo “eram dois meninos, eram dois meninos, eram dois meninos…”.

O tempo passou e Tonho se curou, a bodega começou a prosperar e Vera foi crescendo junto com os negócios do Pai. Seu Tonho era conhecido por ser um exemplo de homem dedicado ao lar, à Esposa e à Filha. Em casa era “quase um padre”, segundo Dona Dalva, dedicando-se inteiramente à educação de Vera e às suas negociatas. Segundo ele, Dalva, como mulher, já tinha sido agraciada por Deus com a vida que tinha e não precisava de mais nada além de seu arrimo, contas pagas e prosperidade da família. A obrigação dela era cuidar de Vera dar-lhe boa educação e tudo necessário para a conquista de um bom casamento. Preferivelmente, com algum parente rico ou rapaz de boa família da região, e que mereça o dote de Vera. Ali no povoado de Pedra Tapada todos sabiam dessa história: O dote de Vera, a castidade de Seu Tonho da Bodega e a beatice de Dadá da Renda de Bilro.

Do balcão da Bodega de Seu Tonho, Vera ficava olhando o mundo passando à sua frente através da contraluz daqueles dois pares de portas abertas. O mundo era refletido como uma tela de cinema, que só sabia da existência por conta das revistas que viam de Recife, e eram trazidas por outro Tonho, Seu Tonho Cantador. “Caixeiro de muitas estradas” como se dizia, animava a Bodega às sextas-feiras no fim da tarde, a cada exatos sessenta dias. Todos esperavam com ânsia, a hora de ir para Bodega escutar as histórias dos filmes que assistia, ouvir sobre os causos dos encantados, escutar canções satíricas em um idioma estranho que ele dizia ser inglês. E tinha também os momentos mais vibrantes, quando declamava folhetos de cordel escritos por variados nomes da época. Vera tinha o seu poeta preferido. Ela gostava de ouvir as criações e enredos absurdos do poeta de Teixeira, Zé Limeira, e sonhava um dia poder viver e até mesmo escrever roteiros de suas ideias absurdas. Ela ria discretamente, mas por dentro sua cabeça se enchia de possibilidades e invenções.

Às vezes, o Cantador pedia a Vera para ler alguma notícia de revista ou de um jornal, mas por ser muito acanhada, ela sorria tímida e respondia balançando a cabeça de um lado a outro nervosa, em negação com o rosto ruborizado, e se encolhia por trás do balcão. Porém quando ficava sozinha, entrava em seu mundo imaginário e lia os textos em sua mente, como se fosse uma história de sua vida própria. Ela se transformava em uma das atrizes do rádio e com voz aveludada respondia ao repórter todas as perguntas.  Ela amava fantasiar isso, pensar em ser famosa, ir para o cinema e atuar em vários papeis, como a moça do Circo que passou pela cidade atuava. Seu nome era Sabrina. Sabrina fazia de um tudo um pouco no picadeiro e fora dele. Era bailarina, palhaça, trapezista e se equilibrava em cima de um cavalo! Certa tarde, durante a temporada da companhia no povoado, Sabrina foi à Bodega e conquistou a amizade de Vera, contando suas peripécias pelo meio do mundo. Contou também dezenas de histórias sobre os lugares e as pessoas mais estranhas que havia conhecido. Foi com ela que Vera soube sobre homens, das intimidades entre homens e mulheres, e entre mulheres e mulheres, e entre homens e homens. E foi para Sabrina que Vera falou pela primeira vez sobre seu primo Zé.

A Bodega era o ponto de referência e ponto de encontro de várias pessoas do povoado. Eles vinham desde comprar um picolé, a um rói-rói, encomendar queijo coalho, ou jogar bilhar, tomar cachaça ou comer bolo de rolo. Era uma Bodega de vender parafuso de cabo de serrote, “de tudo tem um pouco e se não tiver, mando trazer”. Essas palavras estavam entalhadas em uma placa de madeira na parede principal da Bodega. Era a frase estímulo das vendas de Seu Tonho, seu conhecido bordão. Vera estudava pela manhã e todas as tardes durante a semana, e até às duas horas da tarde do sábado, trabalhava na Bodega e ajudava seus pais. A Bodega funcionava das sete da manhã às sete da noite. E esse era o horário régio de todo o povoado. Nada acontecia depois das 19h. Todos se recolhiam neste horário e ficavam em casa à noite. Essa rotina só mudava no domingo, em que o povo ficava na rua até 20h, por conta da difusora local que costumava tocar hinos na Praça da Matriz após a missa. Depois da hora grande, era quando não se via viva alma nas ruas, pois eram horas das “almas mortas”, dito popular do lugar.

Do balcão da Bodega Vera ficava pensando nessa vida toda do mundo e na vida de todo mundo. Juntando os pedaços e as partes coletadas e montando a outras alternativas. Era seu jogo de “se fosse assim”. Tudo começou com a morte de seus irmãos. Ela tinha cinco anos quando aconteceu e quando completou sete, a sua mãe contou a história toda. Por conta das fofocas e reinvenções do povo do lugar e para impulsionar Tonho na processo de sociabilização depois do trauma. Isso marcou demais a vida de Vera, que passou a fazer tudo para nunca decepcionar seus pais. Porém ela queria uma outra vida e isso estava gritando dentro dela, pois era coisa de Limeira, um absurdo! Ela nunca falava com ninguém sobre as suas intimidades. Nem com as colegas do ginásio, que eram tão próximas e nem com suas primas mais chegadas. Só conseguiu com uma pessoa distante, estranha e que não tinha medo de viver do seu jeito. Vera queria saber qual era o jeito dela próprio. Antes de viajar, Sabrina foi se despedir de Vera, que confessou ter encontrado uma irmã nela. Sabrina pediu a Vera que prometesse seguir seus sonhos e impulsos. Falou para amiga conversar com seu primo Zé e revelar o seu amor por ele. “Quem sabe também podes encontrar uma boa amizade”, aconselhou Sabrina.

Primo Zé, tinha um ano a mais que Vera e era filho do primo do Seu Tonho da Bodega, Tio Romão. Com o dinheiro que pegou emprestado do primo bodegueiro, Romão montou uma oficina de consertos de bicicleta em frente a bodega do primo. Também havia prosperado e comercializava peças para todas as localidades. Vera cresceu vendo Zé ali na sua frente, fugindo das responsabilidades e brigando com pai e com a mãe o tempo todo. Zé era repetente na escola e não queria saber de estudar. Ele brincava com isso: “Sou repentista, gosto de repetir”. Ora passava o dia tocando a viola que comprou de Tonho Cantador, ora andando de bicicleta pelo meio do mato, ora estava na nascente do Capibaribe deitado, inventando histórias absurdas e atirando de badoque nas juás . Por sinal era assim que ele se virava. Montou a sua própria bicicleta com as peças que sobrou da oficina do Pai. Catava as frutas que sobravam das colheitas e vendia na Feira do sábado. Rodava as localidades cantando, declamando cordel em troca de comida. Zé entrava na Bodega feito um relâmpago e gritava “Prima Vera, flor do dia, dou a ti minha poesia” e entregava um livreto que havia comprado em algum lugar. Ou podia ser uma flor, ou um confeite açucarado. Sempre tinha um mimo para a prima, o que a deixava sempre muito envergonhada, e Zé saia rindo da Bodega zombando do rubor de Vera. Zé trabalhava tanto e se virava. Mas, para as pessoas do Povoado, isso não era atitude de quem quer ser gente na vida. As palavras de Sabrina fervilharam em sua cabeça e ela decidiu que no dia de seu aniversário, na sexta-feira próxima, ela iria revelar suas intenções para primo Zé.

O dia 23 chegou e todo mundo da escola havia lhe felicitado pela manhã. Era dia de cantoria e poesia, Dia de Bodega e certamente Zé iria aparecer naquele fim de tarde. Naquela manhã, sua professora falou para sua turma do colégio o que era equinócio,  explicando o fenômeno de quando o dia e a noite tinham a mesma duração. Olhando as sombras reveladas pelo sol vespertino, olhando como se movimentavam, Vera refletiu. “Sempre ouvi falar que temos uma sombra interna. Uma outra personalidade monstruosa que não pode ser revelada e que deve ser contida e calada. Em determinado momento do dia mesmo ficando em pleno sol, tem um breve instante em que não provocamos sombra alguma. Somos apenas luz. E em outro em que somos apenas sombra. Isso é equilíbrio. Será que um dia poderemos controlar nossas sombras e luzes, nossos dias e noites interiores e sermos equinócios felizes?”

Em suas recriações, “se fosse assim”, Vera criava narrativas com Zé de variados formatos e enredos. Naquele dia, estimulada pelos assuntos de sala de aula, ela fantasiou mais um: ”Eu e Zé somos noite e dia. Ele é da rua e eu sou da Bodega. Ele canta e eu me calo. Nós poderíamos ter quatro filhos. Duas meninas e dois meninos. Uma menina danada, e um menino danado. Uma menina quietinha e um menino quietinho. Ele podia virar um caixeiro, tal Seu Tonho e viver fazendo o que gosta e eu ficaria em casa fazendo minhas rendas e cuidando de nossa pequena rocinha. Iríamos envelhecer e ficar na calçada conversando com o povo até anoitecer todos os dias. Sábado iríamos fazer feira, domingo iríamos à missa e depois para casa de algum filho ou filha. Ficaríamos assim eu bordando e falando da vida, ele tocando a violinha e contando os causos, até chegar nosso dia. Ele morreria de dia e eu de noite, com mais de cem anos. Todos comemorariam nossa partida felizes, em meio aos nossos netos e bisnetos saudáveis, prósperos e comendo bolo de chocolate com frutas em cima.

A noite cai e todos já estão bem envolvidos com Tonho Cantador e suas novidades, mas nada de Zé. Ele tinha brigado dois dias antes com seu pai, coisa de rotina e Vera não se preocupou. As entravam na Bodega e cumprimentavam Vera, ansiavam pela festança que Seu Tonho prometeu para todo mundo no dia seguinte. Ele havia organizado tudo para o evento, convidou famílias importantes e com possíveis varões para cortejar sua filha. Que pressão na cabeça da sonhadora. Se Zé aceitasse seu amor, Vera estaria disposta, com todas as forças, em assumir tudo no meio da festa, depois que cortarem o bolo de chocolate. Em seu plano perfeito, ela iria oferecer o primeiro pedaço de bolo ao seu amor, seu primo Zé e revelaria sua paixão escondida. Seu Pai poderia morrer de um ataque cardíaco e ou voltar a ficar louco de vez que ela não iria se desistir em sua missão: ser feliz com Zé. E era esse o único presente que desejava na vida. E não importava o que falassem, estava determinada a cumprir seus objetivos. “Mas cadê Zé que não aparecia nunca?”, ficava se perguntando.

Em um determinado momento da cantoria, Dona Dalva mandou chamar Vera às pressas para sua casa, para resolver um assunto emergencial da debutante. Vera pede licença aos presentes e vai para casa. Ao entrar na sala, ela viu a mãe com o seu vestido de debutante na mão pedindo para que vestisse. Quitéria, a costureira, precisava abainhar na altura certa e lembrava: “Tonho detesta vestido curto demais, e não importa se já são 15 anos, o que está certo, está certo.” Já adiantava Dona Dalva aos berros, certamente já cheia das fofocas e conversas fiadas de Quitéria. Vera foi para seu quarto e enquanto colocava o vestido, escutou Quitéria contado a sua mãe: “Como eu estava lhe dizendo, Ele deixou uma carta para ao Pai e outra para a Mãe, escrita toda em poesia. Coisa mais linda de se ver Dona Dalva. Ele é um menino bom só não ganhou juízo. Quem sabe a vida vai lhe ensinar?.” Dona Dalva responde: “Eu espero que não me chegue amanhã aqui, esse tipo de rapaz. Minha filha merece coisa melhor e vai ter. E eu ainda tenho que respeitar, já que é da família. E essa menina que não vem? Veraaaa”. Vera saiu do quarto sem entender nada, porém muito curiosa por saber quem seria esse “Ele” falado. Depois dos acertos de Quitéria, Vera retornou à Bodega e encontrou seu Pai já colocando os últimos clientes para fora. Tonho Cantador não estava mais e Vera perguntou a seu Pai sobre ele, com a esperança de saber notícias de Zé. “Oxe, pois Tonho foi agorinha, e desejou para ti o melhor dia da vida. Ah, Ele deixou esta revista como regalo para ti também.” Informa seu Tonho.

Em seu quarto, com bobes na cabeça em preparação para a grande evento, Vera se “assuntava” se Zé iria aparecer no outro dia, tal como um raio virado na pimenteira e iria abraçá-la como sempre fazia e no meio da festa iria declamar um cordel só seu. Em meio a esse pensamento-fantasia, Vera folheou a revista e percebeu uma pequena folha dobrada. Abriu e viu os rabiscos de seu primo: “Querida prima Vera, minha flor do dia!  Feliz aniversário. Promete para mim que vais aproveitar a tua vida e viver além das portas dessa bodega velha. Minha irmãzinha, confesso que amo Sabrina e vou embora com ela viver do circo. Um dia eu volto e trago um bolo recheado de todos os chocolates do mundo e coberto com todas as frutas que eu poder conhecer pela vida. Zé”.

MR – 23 set 23

 

 

Maria Rosa Caldas

Maria Rosa Caldas é Educadora sociocultural, multiartista, designer, cordelista, gravurista e coordenadora da Cia. Pé no Chão.