As três mulheres se encontram como sempre, no lugar de sempre, mas não no quando de sempre. Aquele dia não era um dia de sempre. Comemorava-se o Dia Internacional do Trabalho. Sim, a informação veio da Cidade  e tinha saído na Rádio Difusora também, que a partir daquele dia, todo dia 01 de maio, em todo mundo, o mundo iria parar de trabalhar. Mas para aquelas mulheres sertanejas não fazia sentido ser um dia do trabalho em que não se trabalhava. Ao bem da verdade, todas ali não conseguiam muito bem separar que era trabalho, o que era emprego, o que era função, o que era obrigação, o que era sina.

Naquele povoado de Tacaratu, em Pernambucano, as pessoas viviam a vida de sempre. Rotinas cíclicas. Memória concretizada nos ritos e tradições das povoações originais e que, cada vez mais intensamente, via-se aglutinando a modernidade das ondas do rádio, dos folhetins, do cinema e do circo. Até os livretos de cordel ditavam a “moda” para o momento e regras sociais a serem seguidas.

Aquelas três mulheres tentavam entender por que em plena segunda-feira, em um dia do Trabalho, não poderiam seguir seus cursos regulares. Não ir à casa da Patroa, não pegar a encomenda da costura, não cuidar de nenhum idoso. O que faziam então era estar ali no terreiro enquanto a criançada, sem aula, caia solta no mundão do mato. O que poderiam fazer era prosear, mas o acertado era a proibição de falar sobre seus respectivos trabalhos!

Rotina quebrada, fala quebrada. As três mudas apenas estavam no dia. Não conseguiam ser o dia. Aquelas rotinas eram a salvação das três. Longe de suas não-escolhas de vida, viviam outros papéis. Em uma brincadeira criada por elas. Cada uma fantasiava suas relações com os maridos, filhos e comunidade aos seus patrões. E todo domingo à noite, quando as crianças davam sossego, os capítulos da semana eram narrados com toda a competência das atrizes das radionovelas.

Mas naquela manhã, não tinham assunto. Já tinham gasto tudo na noite anterior. Era feriado. Sorte delas quando estavam para subir na Rural com destino ao Centro, o filho de rama de Zefa grita: “Mãe hoje é feriado. Tem aula nem trabalho, não!”. Que diacho! E agora estavam ali, as três. Maria sentada no batente da cozinha olhando a linha da Serra. Zefá encostada no Pé de Juá tratando fumo e olhando o céu. Tonha de pé, ciscando o chão com um galho de goiabeira e de vez em quando rodopiando, dando uma pisadinha aqui, e uma pisadinha ali.

Foi aí que Maria desencantou-se das ideias, e quebrando o silêncio delas, misturando com o som do mato falou:

– Oia, diz que está todo mundo parado hoje, sem fazer nada hoje, dia de todo mundo ficar paradinho e descansar. Será mesmo?

Zefa começa a pitar o rolo e sem desviar o olho do céu esturricado de azul, sem nuvem alguma, diz:

– Parado, parado ninguém num fica é não. Tu fala isso mas eu estou aqui, fumando parada, mas minha cabeça fica pensando, pensando…

Tonha que além de ciscar o chão, agora rodopiava cantarolando uma ladainha que ninguém entendia, vira para Zefa e pergunta:

– E se eu disser que já sei o que tu está pensando, deve ser o mesmo que eu.

– Estou pensando em comer uma buchada de bode, que é comida de feriado! Esse negócio de ficar parada só dá fome mesmo. E logo hoje, que lá em Dona Dulce ia fazer carne de boi. Eita nóis viu?! Responde Zefa, rindo alto.

– Mas quem é que para mesmo, com seis zombeteiros, como eu? Maria comenta. – Seis meu, com mais quatro teu e os dois de Maria, já é uma aldeia todinha de capetas! Resmunga.

– Opaí mulé! Meus filhos são um bem, uma benção. Crio do meu jeito. Olha vai cuidar da tuas lavagem de roupa, que os meus meninos cuido eu, de meu jeito ouviu? Responde Zefa aos berros.

– Ei, podem parar com essa bobageira de briga! As coisas tem acontecer é assim mesmo Deus quer. O que vem no bucho da gente e o que vamos dar a Mãe Terra de volta. O que eu tava pensando, Zefa, era sobre aquele outro assunto que falamos ontem depois da prosa!

– Ah sim. Maria que acha de irmos lá falar com a Cachimbeira sobre teu problema?

– Tenho problema nenhum, para Cachimbeira resolver. Zé é assim mesmo. São seis meninos. É duro para mim e para Ele também. E toda vez que ele está com o negócio de mentirinha, eu descubro. Faço um prato caprichado, mais umas lapadas de cachaça, umas rodadinhas de coco e o desavergonhado solta tudinho. Vou lá, no outro dia. Dou uma pisa na “moça” e acabo com tudo. Ele descobre que fui eu e me dá umas lapadas e depois fica bem. Também num tem mais nenhuma sirigaita! Responde rindo, Maria.

– Maria não pode ser mais assim. Tu precisa mesmo de ajuda. Agora está sossegado. Ele está lá, junto com João e Zé na Budega de Sabina, mas não se esqueça que o peste te empurrou na parede novamente. Da outra vez quebrou tua mão e dessa vez, tu perdeu o menino. Tonha suplica.

– Vida miserável. Mas como ficar sem Raimundo? Sou mulé dele desde os 14 anos de idade. Como uma tuia de mulheres daqui, fui prometida desde nova. Essa coisa de casar com primo tem em todo lugar. A minha patroa é prima do marido dela!

– Oia, cabando com essa conversa mole e caldo de fava! Simbora falar com a Cachimbeira, e botar para render esse dia. Num é feriado mesmo?! Proclama, Zefa.

As três sobem a Serra e descem até o vale, chegando na Gruta Itaoca, morada da Cachimbeira. Metros antes da entrada é possível sentir o cheiro do fumo forte e de uma misturada de outras ervas do rezo sagrado. A velha Pankararu vivia a anos morando no mato e vivendo do que ganhava, plantava e caçava. Dizem que perdeu o juízo quando o marido a largou e levou a filha para fora do Brasil, para nunca mais. Dizem, que aquela pessoa que vem atras do saber e da cura da Cachimbeira são pessoas que não tem medo da verdade. Pois as pessoas fracas e que não aceitam o segredo, enlouquecem com suas palavras esfaqueantes.

Maria chorou o caminho todo até a Serra, lembrando a violência que vinha sofrendo anos a fio. Cada filho seu era fruto de uma sessão de agressão sexual. Nas entressafras, como Ela chamava, quando Raimundo se apaixonava por alguma mulher nova, Maria era esquecida. Mas quando algo falhava nos planos de Raimundo, suas decepções da rua transformavam-se em tabefes e socos no lombo de Maria. As sessões de xingamentos e violência física eram abrandados com mais álcool. Na sequência, Raimundo mandava Maria vestir uma roupa de Missa e seguia-se aos eventos de tortura e estupro. E se Maria engravidasse, a vida era bela. Ela amava estar grávida. Nesses períodos, Raimundo a tratava bem. Cuidava de Maria com tanto zelo que chamava atenção de todo povoado. Raimundo se esforçava ao máximo, dando conta de até três jornadas de trabalho para garantir a boa-vinda da criança.

Raimundo amava os filhos mais que tudo no mundo. Raimundo não amava Maria. Amava a capacidade de Maria ser mãe de filhos bons para Ele. Maria sabia disso. Nem sempre Maria engravidava. Até ter a confirmação da gestação, Ela também não apanhava. Houve momentos em que Maria mentiu quando percebeu que não estava grávida de fato. Mas não foi muito bom o resultado. Foi nessa ocasião que Raimundo quebrou a sua mão em uma surra, quando percebeu que Maria estava mentindo já que a barriga não crescia.

O som do agitado maracá da Cachimbeira quebra o pensamento de Maria. Todas cumprimentam a anciã com um beijo na mão, e sentam-se em sua frente. Ela começa uma dança ritmada e evocações com cantos que fazem as três sentirem-se leves e seguras. A energia do lugar muda de mistério para colo e a gruta clareia-se como um encanto. As três abrem os olhos e a Cachimbeira está de volta ao mesmo lugar, olha para cada uma e fala:

– Podem perguntar ou pedir. Lembrem-se: Faça a pergunta certa, para ter a resposta certa. Peça o que tem direito, para ser aceito. Peça o que é errado, tenha caminho maldado.

– Senhora, nossa irmã está passando… Tonha é interrompida pela Cachimbeira, que vira-se para Maria e diz:

– Tu tá apanhando muito. Todo dia leva uma lapada de toalha molhada, para não aparecer as marcas. Tu tás saindo por aí e dando pisa nas mulé, que não merecem apanhar. Elas já tomam de mais da vida. E principalmente do cão que é teu marido. Tu sonhou já com o que vai fazer. Tu sabe o que é preciso fazer. Tua mãe era do rezo. Ela te ensinou também. Tenha a coragem, a vontade tu já tem. Organize as ideias. Pergunte a coisa certa ou faça o pedido certo. Só posso atender uma vez. E nada mais.

– Que sonho foi esse? Pergunta Zefa.

– Conte agora. Tu só fala das tuas invenções lá com tua Patroa e nunca fala a verdade para tuas irmãs. Reclama, Tonha.

– Sonhei que estava indo para a Delegacia do Distrito para dar queixa de Raimundo. Estava vestida como a minha Patroa, de salto, vestido escuro, luvas, chapéu. Estava bem maquiada e até com perfume fino. Só sonho mesmo… Mas então entrei na delegacia e fui bem recebida pelo Delegado Araújo. Ele me recebeu todo lorde e gentil. Era como se fosse umas nove da manhã. Comecei então a contar o que acontecia e mostrava também as marcas em meu corpo. A cada informação que eu falando, Delegado Araújo ia ficando vermelho e maior, seus olhos iam cada vez mais escurecendo e começou a exalar um odor ardido e que queimava as narinas. Ao mesmo tempo que eu ia dizendo que essa violência era vivida por outras mulheres do povoado e por outras mulheres do mundo, as ruas, casas e lojas, praças e prédios públicos iam se destruindo e desfazendo todo lugar. Até chegar em nosso redor e só restarmos Eu e Ele sem chão, flutuando no vazio. Então o Delegado Araújo me abocanha de uma vez e me engole. Quando Ele faz isso, o povoado volta todo ao normal.

– Eu não entendi foi é nada. Reclama Tonha.

– Se tu tiver aqui apenas para fazer sombra, toma chá de Mulungu e vai te embora. Tua irmã precisa de ajuda. Todas têm que rodar para ajudar. Retruca a Cachimbeira.

– O que entendi é que Maria tem o poder de acabar com isso tudo. Mas tem que fazer de um jeito certo. Porque o mundo em que vivemos, essa vida pequena, não vai dar conta de cuidar de uma mulher violentada pelo marido. Vão dizer que é coisa de casal. Ainda mais Delegado Araújo, que dizem até que apanha da mulé dele. Meu entendimento é que tem que ser por outra justiça, que é preciso fazer o certo. O certo para nós, que vivemos isso na pele. Todo dia. Menos em dia de feriado. Argumenta Zefa.

Maria fica calada um tempo. A Cachimbeira coloca-as assentadas e começa a lançar fumaça do cachimbo em cada uma. Sagra o momento e aplica-lhes o rapé. Um silêncio profundo se instala. Por um tempo necessário, as três mulheres choraram, abraçaram-se, cantaram, dançaram, banharam-se de ervas, vestiram-se de mato e comeram juntas.

Maria se levanta como se tivesse pisado em urtiga e solta:

– Já tenho a pergunta para fazer. Na verdade a pergunta é para a Senhora e o pedido é para as minhas irmãs. Posso?

As duas afirmam com a cabeça e a Cachimbeira reforça:

– Podem perguntar ou pedir. Lembrem-se: Faça a pergunta certa, para ter a resposta certa. Peça o que tem direito, para ser aceito. Peça o que é errado, tenha caminho maldado.

– Senhora dona da sabedoria dos ancestrais, da cura e do fazer, o que eu estou pensando em fazer agora, na minha cabeça, vai dar certo? Pergunta Maria.

– Sim! Responde a Cachimbeira agitando fervorosamente seu maracá e firmando uma pisada no chão.

– Irmãs, as duas dão conta de me ajudar a dar conta do plano?

Tonha e Zefa dizem que sim.

As três despedem-se da Cachimbeira e retornam ao povoado.

Dia de Lua, festa na rua, bandeirolas, comes e bebes. Povo enfeitado e colorido, esperando a roda de Coco de Tebei para celebrar o noivado e a pisada do barro da casa de Nena, filha de Dalva da Venda, e de Juarez, sobrinho de Vital da Farmácia. As irmãs estão juntas proseando sobre a vida.

– Ana vai dançar mais Juninho mermo Tonha, ou vai desistir que nem festa passada? Pergunta Zefa.

– Vai sim, oxe, Ele está querendo muito. Vai ficar bonito os dois. Zé vai trazer ele agorinha. Tão terminando a última jornada de hoje, vão banhar e vêm. Estou doida para dançar. Responde Tonha. Pena, que tu num pode, né Maria?!

– Pois é, mais uns dias e eu tiro esse preto de mim. Mas meus filhos, eu já liberei tudinho. Já está bom de luto.

As três riem e seguem para o meio da festa.

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Maria Rosa

São Paulo, 01 maio 2023

 

 

 

Maria Rosa Caldas

Maria Rosa Caldas é Educadora sociocultural, multiartista, designer, cordelista, gravurista e coordenadora da Cia. Pé no Chão.